Terraplanismo, século 19



A reemergência do movimento "terraplanista" -- que defende a ideia de que o planeta Terra é chato como uma panqueca -- neste início de século é, às vezes, citado como prova da decadência geral da mentalidade humana no novo milênio. Não deixa de ser um alívio, portanto, descobrir que as mesmas ideias -- defendidas com a mesma convicção e os mesmos argumentos furados -- já  circulavam no século 19.

Uma edição de 1870 da revista Nature traz uma nota sobre uma aposta de 500 libras (algo como 56 mil libras em dinheiro de hoje, ou mais de 250 mil reais) entre um terraplanista, John Hampden, e o co-descobridor da evolução por seleção natural, Alfred Russell Wallace, para determinar a forma da Terra.

Foram usados três estacas de 4 metros, espaçadas a intervalos de 5 quilômetros. Por meio de um par de telescópios, um em cada extremidade da fila de estacas, buscou-se uma linha de visada ligando a primeira estaca à terceira. A aposta dizia respeito à altura aparente a estaca do meio. Se a Terra é redonda, ela deveria parecer mais alta que as outras duas, como ilustram os navios da imagem abaixo:



Se a Terra é plana, três estacas deveriam aparecer perfeitamente alinhadas. E, de fato, no telescópio o topo da estaca do meio mostrou-se mais de 1,5 metro acima do das demais. Hampden e seu patrocinador, um certo Mr. Carpenter, no entanto, recusaram-se a pagar a aposta.

De acordo com o relato na Nature, "embora os diagramas do que foi visto pelos telescópios em ambas as extremidades, e reconhecidos como corretos tanto por Mr. Carpenter quanto por Mr. Hampden, mostrem o sinal central mais de 5 pés acima da linha dos extremos, esses cavalheiros friamente proclamaram vitória e ameaçaram processar" o árbitro da aposta, por "decidir fraudulentamente contra eles". O que sugere que a cara-de-pau também não é uma invenção recente.

Processos judiciais foram abertos, de fato, mas foi Hampden quem acabou condenado. Wallace, no entanto, se arrependeu de ter entrado na refrega: "'paradoxistas' nunca se dão por convencidos", reconheceu mais tarde. Em sua autobiografia, Wallace oferece um relato pessoal da polêmica, e um diagrama do experimento:

A figura 1 mostra o resultado observado, e esperado numa Terra curva; a figura 2, numa Terra plana

Ainda de acordo com a nota publicada na Nature, Mr. Carpenter era um admirador de "Parallax", pseudônimo de Samuel Birley Rowbotham, autor de um tratado terraplanista intitulado Zetetic Astronomy, em que um teste semelhante ao de Wallace é descrito, mas com o resultado oposto. A aparente falha de Rowbotham em detectar a curvatura da Terra pode ser explicada pela má concepção de seu experimento (com o telescópio a poucos centímetros de altura), o que o tornou vulnerável aos efeitos da refração da luz na atmosfera.

O diagrama que abre esta postagem foi retirado de Zetetic Astronomy. A mesma ideia seria usada para efeito cômico, já na década de 30 do século 20, no romance Piratas de Vênus, de Edgar Rice Burroughs.

Nesse livro, o herói, Carson Napier, vai parar num planeta Vênus habitado por criaturas convencidas de que seu mundo é plano, com um polo central no norte e uma borda infinita no sul. Não importa o argumento que Napier use, os nativos são irredutíveis. Eles até apelam para uma "teoria da relatividade das distâncias" para explicar a "aparente" convergência dos meridianos ao sul e ao norte do equador.

Burroughs decidiu dar a seus venusianos essa ideia fixa peculiar porque o planeta é todo coberto por nuvens: sem acesso às estrelas e demais fenômenos astronômicos, imaginou o autor, a hipótese de um mundo esférico talvez jamais tivesse ocorrido aos habitantes de Vênus. O raciocínio tem lá sua plausibilidade. Mas o pessoal aqui da Terra não tem a mesma desculpa.

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