Vaca louca e febre amarela: apontamentos



O livro The Oxford Handbook of the Science of Science Communication tem um capítulo dedicado ao vexame que foi a comunicação entre cientistas, governo britânico e público durante a chamada "crise da vaca louca", desencadeada nos anos 90 quando se descobriu que uma doença neurológica, que podia afetar gado alimentado com um certo tipo de ração, era transmissível, via consumo de carne bovina, para seres humanos.

Embora o foco do capítulo esteja nas lições desse episódio para a comunicação de riscos alimentares, há alguns pontos que talvez sejam úteis para quem se encontra envolvido na atual onda de incertezas e contradições governamentais em torno da febre amarela.

Uma das principais conclusões do capítulo diz respeito ao elevado "risco de dizer que não há risco": se as autoridades insistem que não há perigo, ou que a situação está sob controle -- que "não há risco" -- e depois se veem desmentidas pelos fatos, sua credibilidade sofre, e a chance de pânico aumenta.

Essa perda de credibilidade é mais grave quando afeta órgãos que esperam ser vistos como técnicos e/ou independentes, mas que, por conta da insistência na comunicação de "risco zero", acabam sendo marcados pelo público como subservientes a interesses políticos ou econômicos.

O capítulo também detecta, no início da crise, aquilo que pesquisadores chamam de "primeira modalidade" da comunicação da ciência ao público: a mensagem que vem de cima para baixo, numa linguagem de certeza absoluta ("a ciência garante"), e que diz o que as autoridades querem dizer, o que pode não coincidir com o que o público deseja saber.

Especificamente no caso presente da febre amarela, o modo como a questão do fracionamento da vacina foi tratado me parece um caso típico de "primeira modalidade". Problema: isso não funciona, ainda mais num contexto em que a quebra de credibilidade (o "risco de dizer que não há risco") já aconteceu.

No caso da "vaca louca", o fracasso da primeira modalidade levou ao surgimento, no âmbito da União Europeia, de um "segundo modo de comunicação da ciência", que envolve maior transparência quanto a riscos e incertezas, maior engajamento com as angústias específicas do público, maior aceitação explícita de responsabilidade pelos agentes públicos. O tema da "comunicação de risco" -- como informar as pessoas, de modo honesto, transparente, e sem alarmismos sobre riscos à saúde -- virou objeto de leis e estudos, e órgãos públicos de avaliação de risco, independentes da administração política, foram criados.

 Matteo Ferrari, o autor do capítulo sobre a crise da "vaca louca" aponta, no entanto, que esse "segundo modo" não representa uma panaceia. Ele traz, na verdade, seu próprios riscos, como o de apelo à demagogia e desvalorização da autoridade do conhecimento científico que, no fim, segue sendo crucial para lidar com crises desse tipo.

Um modelo de "terceira ordem", em que os limites do engajamento público sejam enunciados de modo transparente e o papel central da ciência seja preservado, é sugerido. "A crise da vaca louca foi, antes de mais nada, uma crise de confiança", aponta o autor, deixando uma lição que as autoridades de outras partes do mundo fariam bem em ouvir.

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