Vacinas, terapias e verdades alternativas



Poucas leituras me foram mais penosas que a do primeiro capítulo do livro The Panic Virus, uma história do movimento antivacinação nos Estados Unidos e seu terrível impacto sobre a saúde pública.  O relato abre com a história de uma criança de três anos que morreu porque seus pais se recusaram a vaciná-la -- e de outras duas, de poucos meses de idade, que morreram porque os filhos dos vizinhos não tinham sido vacinados, o que as privou do benefício da chamada "imunidade de manada", que existe quando uma proporção suficientemente grande da população tomou vacina e, com isso, cria uma barreira que impede a chegada da doença a crianças que são novas, ou frágeis, demais para receber a imunização.

Esses relatos arrepiantes sempre me vêm á mente quando leio algo sobre os avanços do movimento antivacinação no Brasil, mais uma moda lamentável importada dos EUA, a exemplo do movimento do design inteligente. Neste domingo, o jornal O Estado de S. Paulo traz uma reportagem sobre o assunto. O texto é sóbrio e correto, como mostra o lide:


No entanto, a reportagem cai em algumas armadilhas trazidas pela forma jornalística padrão, como o apoio em "personagens" -- pessoas entrevistadas que contam suas experiências de vida -- apresentadas de modo quase que inevitavelmente simpático. O leitor, então, é confrontado com depoimentos sinceros de mães que acham que estão fazendo um bem para os filhos, de um lado, e com pronunciamentos frios e distantes de autoridades  sanitárias, de outro. O peso emocional, mesmo que involuntariamente, tende a favor do lado antivacinação. Ouvir pais que perderam os filhos para doenças preveníveis por vacina, como sarampo, poderia ter ajudado a equilibrar melhor o texto, mas imagino que esse não é o tipo de fonte fácil de encontrar. A foto que ilustra a matéria, mostrando uma família de não-vacinados passeando feliz de mãos dadas num jardim, também não é lá de grande ajuda.

Não vou entrar, neste momento, na discussão das falácias e inverdades a que os propagadores da antivacinação se agarram -- a falsa associação com autismo,  a mentira do mercúrio tóxico, etc. Já tratei disso tido numa postagem anterior, que quem tiver curiosidade pode ler na íntegra. O que gostaria de levantar aqui é a questão da associação insidiosa entre antivacinação e terapias alternativas -- como as que o SUS decidiu abraçar como se fossem a última coca-cola do deserto.

Em Panic Virus, os pais que optaram por não vacinar o filho mais novo e, por conta disso, viram-no morrer, estavam seguindo os conselhos de um quiropata. A chamada "medicina antroposófica", recém-integrada ao nosso sistema público de saúde, tem uma longa tradição de desprezo pelas vacinas, embora os órgãos de classe tentem se desvencilhar dessa posição. Na homeopatia a situação não é muito diferente: um posicionamento público oficial a favor das vacinações e uma prática de consultório, muitas vezes, contrária à imunização. No geral, a relação entre tratamentos alternativos e vacinas é eminentemente hipócrita. Citando outro trecho do material de hoje  do Estadão:


Ao mesmo tempo em que se preocupam com a saúde das crianças e com a possível perda da imunidade de manada, nossas sábias autoridades sanitárias financiam, sob a rubrica de tratamentos alternativos, focos de propaganda antivacina. É o uso racional do dinheiro público em toda sua glória.

Uma questão complexa é o que fazer com os pais que embarcam na onda antivacinação, e seus filhos. Nos Estados Unidos, há um movimento de pediatras que simplesmente se recusam a atender crianças não-vacinadas. Isso faz sentido, de certa forma, até como proteção para os demais pacientes: você não vai querer que um bebê de poucos meses pegue sarampo ou coqueluche na sua sala de espera. Há escolas que seguem a mesma precaução. 

Mas punição e ostracismo geram o risco de radicalizar ainda mais a subcultura, tornando-a atraente para um certo tipo de perfil psicológico que, por questões de vaidade, gosta de se imaginar "contestador" ou "alternativo". No longo prazo, informação talvez seja o melhor remédio (sem trocadilho). Para colaborar, apresento a imagem que abre esta postagem: produzida por The Wall Street Journal, mostra a progressão do número de casos de sarampo nos Estados Unidos, Estado a Estado, tendo como linha de corte a data da introdução da vacina. Como se diz por aí, uma imagem vale por mil palavras.

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