Mitocôndrias e deuses astronautas

Durante o evento pró-fosfoetanolamina realizado no último sábado, os químicos da USP de São Carlos que, ainda hoje, são os principais promotores da fosfoetanolamina sintética(R) (FOS) como cura universal e inquestionável do câncer, apresentaram sua visão completa do suposto mecanismo de ação da substância (ou mistura de substâncias, de acordo com a análise realizada pelo Instituto de Química da Unicamp). Minimizando o tão decantado papel da FOS em "marcar" as células cancerosas para o sistema imunológico, concentraram-se mais na ideia de que a molécula é capaz de reativar as mitocôndrias, as estruturas responsáveis por oxidar açúcar e gerar energia no interior das células.

Resumindo, os pais da FOS afirmam que as alterações genéticas que fazem a célula reproduzir-se descontroladamente são mera consequência de um problema metabólico, envolvendo o transporte de gordura para o interior da célula.

A falta de gordura, de acordo com o modelo, desativa a mitocôndria. Para obter energia nessas condições, a célula passa a consumir o açúcar num processo de glicólise anaeróbica, análogo à fermentação praticada pelas bactérias, em vez de queimá-lo com oxigênio. Esse novo modo de produção acidifica o meio celular interno. No fim, é a acidez que causa as mutações que transformam o DNA saudável em canceroso. Ainda segundo a biologia são-carlense, a FOS atua normalizando o transporte de gordura, o que reativa a mitocôndria, o que leva a célula, já acostumada a uma dieta frugal à base do ineficiente processo de glicólise anaeróbica, a morrer de indigestão. E pronto: adeus, câncer!

Imagino que, para o biólogo molecular ou o estudioso sério do câncer, ler os parágrafos acima deve causar um efeito semelhante ao que ler um livro de Erich von Däniken produz num historiador ou arqueólogo: fascínio -- ou exasperação, dependendo do estado de ânimo -- diante do amontoado de ideias fora de lugar, de meias-verdades, da reciclagem inepta de teorias desacreditadas, da mistura de fantasia, erros crassos e cara de pau.

No entanto, para o cidadão desavisado -- para quem a palavra "mitocôndria" talvez evoque apenas uma ou duas lembranças vagas das aulas de biologia do ensino médio, e "fermentação" signifique um modo de produzir cerveja -- a coisa pode até soar lógica, mais ou menos como a hipótese dos deuses astronautas parece razoável para muita gente: afinal, há tantos planetas lá fora e, ora bolas, quem construiu as pirâmides?

Como o caso dos deuses astronautas mostra, porém, plausibilidade superficial aos olhos do público não significa plausibilidade científica. E, assim como um pouco de pesquisa logo revelou o fio da meada seguido por Von Däniken na elaboração de seu mito, a hipótese de São Carlos para a origem do câncer também tem antecedentes, e são antecedentes que em certo momento desempenharam um papel importante na história da ciência. A eles, então.

O principal é Otto Heinrich Warburg (1883-1970), biólogo alemão, ganhador do Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1931. Warburg ganhou seu Nobel por ter identificado a enzima que permite às células vivas queimar carboidratos com oxigênio, para obter energia, sem irromper em chamas -- afinal, no mundo extracelular, "queimar com oxigênio" significa "botar fogo". Mas ele é mais lembrado, no universo da pesquisa do câncer, por outra descoberta, o "efeito Warburg", e por ter formulado, com base nele, a "hipótese de Warburg", ambos na década de 20.

O "efeito Wargburg" é a constatação de que a maioria das células de câncer -- uma estimativa recente falava em algo entre 60% e 90% -- apresenta altas taxas de glicólise, mesmo na presença de oxigênio. Isso era (e é) estranho, porque, havendo oxigênio disponível, seria muito mais eficiente queimar o açúcar na mitocôndria, em vez de fermentá-lo no citoplasma (a meleca que preenche a célula). Já a "hipótese de Warburg" é a ideia de que o câncer é desencadeado por um defeito na mitocôndria.

Do ponto de vista da biologia conhecida em 1926 (isso são noventa anos atrás, nota bene), tinha lógica: havia a correlação forte entre célula maligna e fermentação; fermentação só parecia fazer sentido se a mitocôndria estivesse defeituosa. Dois fenômenos -- fermentação e câncer -- uma só causa, a mitocôndria coxa. Como dizem os tenistas, game, set, match. Certo?

Errado. Em ciência uma boa ideia, por melhor que seja, nunca ganha dos fatos, e as pesquisas realizadas nas décadas seguintes mostraram que os fatos não estavam ao lado dessa hipótese. Isso não é culpa de Warburg: ele formulou sua explicação para o câncer quase 20 anos antes que se estabelecesse que o DNA era a molécula da hereditariedade.

Em 1976, um artigo de revisão intitulado "The Warburg Hypothesis Fifty Years Later", anunciava que "o conceito de que o início ou a sobrevivência do câncer se dá por conta de uma respiração 'defeituosa' ou pela alta taxa de glicólise parece simplista demais para merecer séria consideração". Isso foi publicado 40 anos antes da apresentação do grupo de São Carlos no Hotel Excelsior. Talvez não tenham recebido o memorando.

Falando sério: é claro que, da mesma forma que a ciência sobre o assunto mudou de 1926 para 1976, ela também poderia ter mudado de novo entre 1976 e 2016. Mas não foi o que aconteceu. O efeito Warburg ainda é muito estudado, porque representa um marcador importante para o câncer e uma alteração metabólica significativa de parte das células tumorais: entre as hipóteses para explicá-lo estão a de  que ele permite que as células de câncer sobrevivam mesmo no interior de tumores sólidos, onde o oxigênio quase não chega, ou que, ao acidificar o microambiente no entorno do tumor, prejudica as células saudáveis. Mas, o efeito Warburg como causa do tumor? Nada feito.

Outra revisão, publicada em Nature Reviews em 2004, afirma: "Embora a 'hipótese de Warburg' tenha se provado incorreta [grifo meu], as observações experimentais de aumento da glicólise nos tumores, mesmo na presença de oxigênio, têm sido repetidamente confirmadas". Já dois outros artigos, um de 2006 na Science e outro de 2013 em Nature Communications implicam mutações no gene p53 na regulagem da respiração celular e na intensificação da glicólise. Ah, sim: o p53 é um dos mais conhecidos genes envolvidos na inibição (ou produção, dependendo de seu estado) de tumores. O título da Nature Communications são poderia ser mais claro: "Tumour-associated mutant p53 drives the Warburg effect".

Enfim, o estado atual da ciência sobre o assunto é claro: a cadeia causal vai da disfunção no DNA para a glicólise e a mitocôndria, não o contrário, como se supunha na Alemanha em 1926 (e em São Carlos em 2016, pelo jeito).

Tendo dito tudo isso, gostaria de fazer duas ressalvas.

A primeira é que o fato de não haver uma explicação competente para o funcionamento de uma droga não implica, logicamente, que ela, a droga, não pode funcionar. A história da Medicina está repleta de medicamentos e intervenções úteis que entraram em uso muito antes de alguém ser capaz de explicar por que eles davam certo. A vacinação é um caso clássico. O veredicto final sobre a FOS não virá de argumentos teóricos ou de exposição histórica,  mas dos ensaios clínicos. No entanto, é forçoso reconhecer que a evidência disponível até agora -- que inclui a distribuição irresponsável das pílulas, a explicação mal-ajambrada de seus efeitos, os resultados pré-clínicos decepcionantes -- não recomenda otimismo.

A segunda é que nenhuma "verdade científica" está gravada em pedra. Do mesmo modo que a hipótese de Warburg passou de respeitável em 1926 para "simplista demais" em 1976, chegando a "incorreta" em 2006, é concebível que algum dia ela venha a ser reabilitada. Mas essa reabilitação, caso ocorra, terá de vir apoiada em observações contundentes e experimentos sólidos, capazes de reverter praticamente todo o conhecimento sobre câncer e genética acumulado pela Bilogia e pela Medicina ao longo dos últimos 90 anos. Até que essas provas sejam apresentadas, falar em câncer causado por mitocôndrias merece o mesmo crédito que falar que deuses astronautas esculpiram a Face de Marte.

Comentários

  1. E você, que está aí de espectador !
    Cuidado para não se transformar em papagaio num tiroteio.
    Ou você acha que nunca terá CÂNCER, nem ninguém de sua família, nem seus pais, nem sua pessoa amada, nem seu melhor amigo, nem seus filhos sofrerão disso ?
    Esse pode ser o seu erro. A hora é essa. Depois não chore sobre o leite derramado.
    Já imaginou seus filhos morrendo de CÂNCER antes de você ?
    Vamos lhe rogar uma praga: que você - espectador cético e um verdadeiro "papagaio num tiroteio " - em razão do câncer, ainda seja salvo pela FOSFOETANOLAMIMA SINTÉTICA.
    Não seja um papagaio num tiroteio !

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  2. Quer dizer que tem uma patente, mas ninguém sabe como faz. Só funciona aquela feita com "água benta" feita por algum iluminado: se ele morrer, some a formula. O que os outros fazem é mentira. Só valem os testes que derem certo.
    O outro joga "praga" nas pessoas, para assustar: se tiver câncer trate pelo convencional.
    O outro não sabe o que é PUBIMED (uma base de dados) e acha que há trabalhos publicados lá.
    A outra diz que tem 1000 trabalhos publicados, mas não acha 15!
    Só no Brasil, mesmo.

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