Editando embriões humanos: a era biopunk?

Pesquisadores do Instituto Francis Crick, no Reino Unido, obtiveram autorização oficial para aplicar uma técnica de edição genética em embriões humanos saudáveis. A técnica, chamada CRISPR/Cas9, envolve basicamente o uso de um "robô" bioquímico para realizar operações de "copy-paste" no material genético do núcleo celular, não só eliminando sequências indesejadas, como também permitindo que elas sejam substituídas por versões escolhidas pelos pesquisadores.

Adaptada por cientistas a partir do arsenal imunológico de certas bactérias, que usam ferramentas naturais de edição genética para se livrar do DNA de parasitas, a CRISPR/Cas9 vem causando revolução tecnológica na área de manipulação genética, por causa de sua enorme precisão: ela permite que recortes e emendas sejam feitos no genoma com um controle de localização extremamente apurado. Em setembro do ano passado, a revista Science publicou artigo que relata a tentativa, bem-sucedida, de trocar um gene defeituoso, responsável por causar distrofia muscular em camundongos, por uma versão saudável, produzindo animais sem os sintomas associados à doença.

A autorização concedida agora pela Autoridade de Embriologia e Fertilização Humana (HFEA, na sigla em inglês) permite que os cientistas do Francis Crick usem a técnica para manipular o DNA de embriões humanos saudáveis, doados por casais que passaram por procedimentos de fertilização in vitro.

A pesquisa aprovada envolve a manipulação de genes implicados no desenvolvimento do embrião, com o objetivo de compreender como esses genes funcionam. Todos os experimentos serão interrompidos após uma semana de crescimento, quando o óvulo fertilizado tiver atingido o estágio de blastocisto, uma esfera de menos de 300 células, incluindo as que poderiam vir a dar origem à placenta e ao feto.

Os primeiros experimentos envolvendo a edição genética de embriões humanos por meio de CRISPR/Cas9 haviam sido descritos em abril do ano passado por pesquisadores chineses. Assim como previsto na pesquisa proposta pelos britânicos, os embriões manipulados na China não foram implantados em útero e não se desenvolveram para além dos estágios iniciais. O trabalho chinês foi mais uma prova de conceito -- ver se a técnica funcionava no genoma humano, e com que eficácia -- do que qualquer outra coisa.

O uso de edição genética em embriões humanos traz um pequeno imbróglio ético com, pelo menos, quatro vertentes: a primeira é a que questiona o uso de embriões humanos em pesquisa (qualquer pesquisa, envolvendo genes ou não). Esse é um debate que, cedo ou tarde, acaba se confundindo com o do direito da mulher ao aborto, embora o Supremo Tribunal Federal brasileiro tenha conseguido erguer uma espécie de barreira acolchoada entre as duas questões.

A segunda é da modificação deliberada do genoma humano, levada a termo -- isto é, a produção de uma criança geneticamente modificada, ou mesmo geneticamente montada em laboratório. Assim como no caso do uso de embriões em pesquisa, ela tem conotações místico-mítico-religiosas, envolvendo coisas como uma suposta Providência Divina com a qual o ser humano não deveria interferir, ou a alegação que a natureza é sábia e, mais uma vez, com ela não se deve mexer; e ainda o problema, bem mais palpável, de se já existiria conhecimento suficiente para que se faça esse tipo de manipulação de modo responsável.

A terceira questão deriva da segunda: modificações genéticas num embrião humano que venha a ser levado a termo, que gere um bebê que viva até a idade adulta, cedo ou tarde serão transmitidas para as gerações futuras e entrarão no patrimônio genético da espécie. Queremos isso? Será seguro?

Por fim, há o problema dos interesses e dos direitos do primeiro ser humano "CRISPR": como poderemos saber se essa criança nascerá sem deficiências ou outros problemas trazidos, indiretamente, pela modificação? Seria ético tentar criar esse bebê por tentativa e erro, destruindo os fetos malsucedidos até que um se saia bem? E se o procedimento for necessário para gerar um bebê saudável? Na adolescência e na idade adulta, essa pessoa sofreria discriminação? Pais se recusariam a permitir que seus filhos fossem à escola com ela, ou a impediriam de namorar seus filhos?

Para complicar um pouco mais a equação, a ferramenta CRISPR/Cas é tão fácil de usar que já tem gente tentando produzir kits, à semelhança dos antigos jogos de química juvenil, para quem quiser brincar de edição genética em casa -- por enquanto, mexendo apenas com bactérias.

"Biopunk" é um subgênero de ficção científica pouco divulgado, que especula sobre como seria o mundo se as ferramentas da biotecnologia se tornassem tão baratas e democráticas como são, hoje em dia, as da informática e da telecomunicação. Desconfio que, assim como aconteceu com o cyberpunk, ele em breve será ultrapassado pela realidade (momento comercial: tenho um conto meio biopunk, aqui).



Comentários

  1. Parabéns pelo texto. Esse assunto é tão polêmico quanto as suas reflexões e deve ser estudado com extremo cuidado pelos detentores das tomadas de decisão.

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  2. Como já dizia o Sex Pistols: "God Save The Queen"

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