Videntes, "falsos" e outros

No último domingo, a Folha de S. Paulo trouxe reportagem sobre um empresário português que teria sido lesado em pelo menos R$ 50 milhões por uma falsa vidente. A primeira questão que emerge daí é qual o critério para se distinguir entre uma vidente "falsa" e uma "verdadeira". Se for o poder de ver o futuro ou de realizar operações mágicas eficazes, afirmar que existem videntes "verdadeiros" cai na mesma categoria  de afirmar que há um alienígena, vivendo na galáxia de Andrômeda, que psicografa peças de Shakespeare: uma intrigante possibilidade teórica, mas que, na ausência de provas, deve ser tratada como ficção ou bobagem, dependendo do contexto.

Outra acepção possível para "vidente verdadeiro" seria alguém que, mesmo sem ter poderes reais, acredita sinceramente possuí-los. Há quem sustente que essa sinceridade, essa validação subjetiva, isenta o vidente "verdadeiro" de culpa pelos eventuais danos e prejuízos causados por sua prática, mas trata-se de uma proposição complexa: não são raros os canalhas que acabam acreditando em si mesmos como mecanismo de defesa contra a própria consciência, ou para melhor desempenhar o papel de salvador esotérico diante da vítima.

Fora de ambientes religiosos, no entanto, o vidente "verdadeiro", no sentido de inocente e sincero, parece ser uma figura rara: o New York Times publicou, há algum tempo, extratos de depoimentos de "videntes" detidos pela polícia americana. A maioria mostrou-se pronta a confessar que tudo não passava mesmo de um golpe.

Falei em ambientes religiosos. O bom tom pressupõe que se distinga entre "golpistas" que prometem dinheiro, amor e saúde apelando para certas superstições populares ou doutrinas esotéricas, e "ministros religiosos", que fazem o mesmo tipo de promessa, só que apelando para a mitologia judaico-cristã, mas há situações em que fica difícil enxergar alguma diferença.Neste feriado de Finados, recebi um panfleto, supostamente da Igreja Católica, fazendo promessas não muito veladas de sucesso financeiro e de combate ao "olho gordo" e a "trabalhos de magia" com o uso de uma certa "água benta do abre caminhos" que não fica devendo nada à "água engarrafada do Rio Jordão" oferecida pelas denominações neopentecostais menos bem vistas.

A segunda questão é como as pessoas caem nesse tipo de golpe. Desespero e solidão são poderosos atenuantes do senso crítico -- não é por nada que a maioria das vítimas de golpistas esotéricos são pessoas doentes, idosas ou endividadas -- mas muitas vezes há alguma técnica envolvida, também. No meu livro digital sobre astrologia -- que será lançado no início de dezembro, mas que já está em pré-venda -- dedico alguns capítulos ao que poderíamos chamar de marketing e psicologia do esoterismo.

Uma das videntes mais famosas do século passado, a americana Jeane Dixon, tinha o hábito de prever muito, às vezes contradizendo-se de uma profecia para a outra, e de chamar a atenção da mídia para as previsões que se cumpriam. Por exemplo, em 1956 ela previu que o presidente dos EUA a ser eleito em 1960 seria um democrata que morreria no cargo. E, bem, o eleito foi John Kennedy (democrata), assassinado em 1963.

Dixon passou o resto da vida (ela morreu em 1997) faturando em cima da fama de ter sido a vidente que previu a morte de Kennedy. E omitindo o fato de que em 1960, às vésperas do pleito, ela havia previsto o oponente de Kennedy, Richard Nixon seria o ganhador!

Entre outras profecias furadas de Jeane Dixon estão a da descoberta da cura do câncer em 1967, e a da conquista da paz mundial em 2000.

Outro mecanismo muito usado é o da leitura fria. Essa é uma combinação de diversas técnicas, mas que podem ser resumidas na fala de uma das videntes citadas no New York Times: "É só ir pelo que eles falam", disse ela, referindo-se à forma como se faziam as previsões e leituras para os clientes/vítimas. "É tudo uma armação. É pela postura, pelo comportamento deles".

Um fato psicológico pouco divulgado é que cada pessoa, por mais que se imagine uma individualidade única, com dilemas a questionamentos absolutamente pessoais, na verdade costuma ter problemas muito parecidos com os de outras da mesma faixa etária e classe social. Não é difícil pressupor que um vestibulando rico estará preocupado em saber se vai ganhar um carro ou uma viagem para Miami caso entre na faculdade, ou que um idoso da classe C tema ficar sem aposentadoria.

Um complemento da leitura fria é a "leitura quente", em que o vidente levanta dossiês sobre clientes em potencial. Em seu livro The Psychic Mafia ("A Máfia Mediúnica" seria uma tradução possível) M. Lamar Keene relata como grupos de videntes e médiuns nos Estados Unidos mantinham, nos anos 70, arquivos extensos sobre suas vítimas mais frequentes, as pessoas endinheiradas que procuravam serviços espirituais, ou contato com entes queridos mortos, repetidas vezes.

Keene conta que Arthur Ford (morto em 1971), um dos mais populares médiuns dos Estados Unidos, mantinha um arquivo detalhado de dossiês e recortes de jornal, disfarçados como livros de poesia. Antes de receber clientes, Ford se recolhia numa sala para relaxar, comungar com os espíritos, “ler poemas”: na verdade, para pesquisar a vida do consulente e ter informações, vindas do "mundo dos espíritos", para impressioná-lo.

 Hoje em dia, onde a maioria das pessoas expõe a vida nas redes sociais, e até mesmo os detalhes mais íntimos estão à distância de um clique no Google, a leitura quente se tornou algo muito simples de fazer. 

Comentários

  1. " Hoje em dia, onde a maioria das pessoas expõe a vida nas redes sociais, e até mesmo os detalhes mais íntimos estão à distância de um clique no Google, a leitura quente se tornou algo muito simples de fazer. "

    Foi o que fizeram em algumas demonstrações:
    http://news.yahoo.com/blogs/trending-now/psa-uses-psychic-demonstrate-dangers-sharing-personal-online-174017116.html
    ------

    []s,

    Roberto Takata

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  2. Sempre impecável Orsi, esse texto esta ótimo, vou recomendar para alguns amigos !

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