Philp José Farmer, o meteorito de Wold Newton e eu

Em outubro, um conto meu, escrito em parceria com Octavio Aragão, será publicado numa antologia de histórias ou escritas por Philip José Farmer, ou inspiradas por elas. Esse mesmo conto, The Last of the Guaranys, já saiu em outro livro, The Worlds of Philip Jose Farmer 3: Portraits of a Trickster, mas esta primeira publicação é um volume relativamente caro (US$ 25), e composto principalmente de trabalhos voltados para o estudioso da obra farmeriana. O novo volume, Tales of the Wold Newton Universe, é fundamentalmente uma antologia de ficção, para as massas (custa US$ 8,63 na pré-encomenda), e reúne também contos escritos por Farmer sob inspiração dos velhos pulps.

Como Octavio e eu fomos parar lá? E do que se trata o nosso conto? Bom, isto vai requerer um pouco de background, então, por favor, paciência.

Em 1972, o escritor de ficção científica americano Philip José Farmer (1918-2009) publicou o livro Tarzan Alive, uma biografia ficcional de Lorde Greystoke. A premissa por trás do livro era de que Tarzan era uma pessoa real, e que as aventuras de Tarzan escritas por Edgar Rice Burroughs eram "versões ficcionalizadas" de eventos reais.

No mesmo livro, Farmer lançava ainda a hipótese da Família de Wold Newton: segundo essa ideia, um meteorito, caído na Inglaterra em 1795, teria irradiado um grupo de pessoas presentes ao evento, criando uma série de mutações genéticas benéficas que, nos séculos seguintes, dariam origem ao fantástico número de aventureiros, cientistas e vilões com capacidades virtualmente sobre-humanas do mundo anglo-saxão: Sherlock Holmes, Tarzan, Professor Moriarty, James Bond, o Viajante do Tempo de HG Wells, etc., etc.

Com o passar das décadas, essa "Hipótese de Wold Newton" virou uma espécie de jogo intelectual, não muito diferente (mas bem mais maluco) que o Grande Jogo clássico dos fãs de Sherlock Holmes. Ensaios, teses, contos e romances foram escritos para destrinchar a genealogia dos grandes heróis da cultura pop, ligando-os entre si (seria Bond um sobrinho-neto de Holmes?) e aos ancestrais originais de Wold Newton. Octavio e eu participamos de modo mais ou menos ativo desse jogo por algum tempo, e chegamos a produzir uma genealogia ligando James Bond a Fox Moulder.

Eu me afastei da brincadeira depois de algum tempo, sentindo-me mais atraído pelo fandom de HP Lovecraft e pelo sherlockianismo "clássico", mas Octavio manteve o contato vivo com os woldnewtonianos, como o fantástico Win Scott Eckert. Graças a isso, ele consegui até mesmo uma entrevista com Farmer, possivelmente a última que o Mestre concedeu antes de morrer.

Bom. Além de levá-lo a inventar o Universo de Wold Newton, a paixão de Farmer por Tarzan -- personagem que ele via como sendo a destilação mais pura do Arquétipo do Aventureiro -- fez com que o escritor postulasse uma vida imortal para o herói.

No romance Time's Last Gift, que certamente está na minha lista de dez livros de ficção que todo mundo deveria ler antes de morrer, Farmer cria uma situação em que John Gribardsun (o Tarzan do Universo Wold Newton), depois de receber um soro da vida eterna, retorna a 12.000 AEC e passa os 14 mil anos seguintes voltando ao presente, um ano de cada vez. Nesse período, o homem-macaco realiza os feitos que, distorcidos pelo folclore, chegariam a nós atribuídos a Gilgamesh, Sansão, Hércules, Aquiles... Enfim, o Arquétipo do Aventureiro se transfigura em todos os grandes aventureiros da história e da mitologia.

Corta para 2011.

Nesse ano, Octavio me procura com a informação de que os editores da série semiacadêmica Worlds of Philip José Farmer estavam dispostos a analisar um conto nosso, para inclusão no terceiro volume. Nós tínhamos, porém, de fazer um pitch -- apresentar uma sinopse e uma justificativa. No início, tentamos emplacar uma versão tropical de Flesh, um romance pornográfico, neopagão e pós-apocalíptico que, aliás, também está na minha lista de dez livros de ficção que todo mundo deveria ler antes de morrer (suponho que Farmer domine a lista).

Mas os americanos não estavam interessados. Foi então que Octavio teve a ideia genial: se John Gribardsun tinha sido todos os heróis sobre-humanos da história, ele não teria sido também o Peri, de José de Alencar? Nasce, aí, Last of the Guaranys. Com direito a uma versão repaginada de Ceci e a uma explosão nuclear no Brasil do século XVII.

Confesso que, enquanto trabalhava no conto, ficava pensando se ele, caso um dia saísse no Brasil, não levantaria objeções políticas: "Pô, ó o complexo de vira-lata aí, pegar o primeiro super-herói brasileiro e dizer que ele era, na verdade, um lorde inglês". Não sei se essa preocupação é um sinal de que superestimo a importância do conto ou de que subestimo a inteligência e o senso de humor das pessoas, mas numa cultura onde o uso de uma monstruosidade disfônica como "estadunidense" torna-se aceitável, meramente por causa de uma tola dor-de-cotovelo político-ideológica, tudo é possível.

Enfim, o conto foi aceito, publicado, pago (detalhe importante) e tocamos a vida. Ontem, recebemos a notícia de que a obra tinha sido selecionada para integrar a antologia da Titan Books sobre o Universo de Wold Newton! O livro contém 11 contos, sendo que sete têm Farmer como autor. Octavio e eu somos os únicos não-anglófonos incluídos. O que sugere que fizemos alguma coisa certa, afinal.

No meu caso particular, esta será a terceira publicação de um trabalho escrito originalmente em inglês em menos de dois anos: além da Worlds of Philip José Farmer 3, eu já havia publicado na revista de contos policiais Needle.

Comentários

  1. Veja o que é a arte. A paixão pelo humor levou-me ao humor cientifico, o humor cientifico fez-me interessar por ciencia e consequentimente à literatura de ficção cientifica e ai cheguei até vc

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  2. Espero que a viagem esteja valendo a pena! :-)

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  3. Parabéns pelo trabalho! Como fã de ficção científica, irei atrás das obras de Philip José Farmer. Entretanto discordo de sua opinião quanto ao termo estadunidense. O adjetivo pátrio em questão pode até não ser o mais eufônico, mas está longe de ser uma simples "dor-de-cotovelo político-ideológica". É uma palavra etimologicamente correta e reconhecida por todos os grandes dicionários da língua portuguesa. Não é criticando nossa cultura que o senhor tornará menos questionáveis os termos "América" e "americano" quando se referem, respectivamente, a um só país ou a uma só nacionalidade. Não gosto de falar o óbvio, mas o fato é que a América é um continente e americanos são todos os cidadão dessa bela terra.

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    1. Oi, Ivan! Obrigado!

      Falando do gentílico: sim, ao pé da letra "americano" é todo mundo que nasce na massa de terra a oeste do Atlântico e a leste do Pacífico, mas, até aí, "estadunidense" também pode se referir, ao pé da letra, aos cidadãos do México (cujo nome oficial é Estados Unidos Mexicanos) ou aos brasileiros nascidos antes da década de 60 (quando éramos Estados Unidos do Brasil). E, para seguir nessa linha, até os suecos são afrodescententes, porque a espécie humana surgiu na África. Palavras são escolhidas não apenas por sua conotação etimológica exata, mas também por seu papel histórico, o contexto tradicional em que se desenvolveram, etc.

      Fazer de conta que o termo "americano" não ganhou, nos últimos 3 séculos, a conotação, por pura força do uso, de se referir preferencialmente aos cidadãos dos EUA e, apenas muito raramente, aos nascidos nas Américas em geral me parece meio tolo, e mais ainda quando a palavra escolhida para substituí-lo é tão feia. Não é parando de chamar os gringos de americanos que vamos fazer com que deixem de ser a maior potência do continente.

      Além disso, eles pegaram o nome primeiro (não tinha outro país independente no continente antes dos EUA, afinal) e, bolas, é apenas educado chamar os povos pelos nomes que eles escolheram para si mesmos. Se isso vale para o povo do Zimbábwe, que preferiu não ser mais rodesiano, por que não para o dos EUA?

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    2. Prezado Carlos,

      Eu não creio que as palavras são "escolhidas" apenas por sua etimologia. É justamente o contrário. A etimologia existe para explicar a origem das palavras e o desenvolvimento de suas formas, portanto posterior ao uso. Como você bem colocou anteriormente, as mais variadas palavras se estabelecem justamente pela força do uso. Realmente, algumas são criadas naturalmente. Porém, outras têm uma origem mais específica. Mas se entendermos que a "validade" de uma palavra é determinada por seu uso constante, podemos considerar que ambas são válidas. O português, como todas as outras línguas vivas, está em constante mutação. E os neologismos fazem parte desse processo.

      Outra questão.

      Mesmo que o termo "estadunidense" tenha sido apropriado por um discurso "político-ideológico", não vejo com estranheza esse tipo de utilização. Sei que o fato do EUA ser conhecido como a "América" diz mais sobre a formação histórica e cultural do mundo desenvolvido, e especificamente deste país, do que uma simples questão de semântica.

      Entretanto, como você mesmo diz, as palavras também são utilizadas por seu papel histórico. E se concordarmos que o presente será história no futuro, nada mais normal, historicamente falando do que o questionamento à um país historicamente imperialista, quanto ao uso específico do termo cuja conotação abrangente é em referência à outros povos, muitos deles vítimas históricas da política dos EUA.

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    3. Quando li o excelente (como sempre) post do Orsi, pensei na hora: este paragrafo sobre o tal patronímico vai dar mais comentários que o assunto principal.

      Minha opinião coincide com a do Orsi, e foi magníficamente resumida em um comentário de outro blog que frequento, o do Sérgio Rodrigues:

      "Duas verdades são óbvias para quem acompanha o assunto:
      1 - Ambas as formas, americano e estadunidense, são atualmente aceitas pelos gramáticos.
      2 - Quem usa a forma estadunidense é, quase que invariavelmente, um chato."

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    4. Sr. Microempresário,

      Respeito a posição do Orsi, apesar de não concordar com ela. Mas, sinceramente, acho que esse assunto merece mais do que xingamentos infantis. Seu argumento equivale a chamarmos quem faz uso do termo "americano" de bobo.

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  4. Caro Ivan, caso vc deseje debater esse assunto, existem centenas, talvez milhares, de discussões pela web afora. Jamais encontrei uma que chegasse a um consenso, nem sequer um único internauta que tenha mudado sua opinião inicial, mesmo após debates longuíssimos.

    A citação que fiz não pretende ser nem um xingamento nem um argumento. É apenas uma constatação feita por alguém, baseado em sua experiência no assunto, e com a qual concordo, baseado em minha experiência no assunto. Chame-a de estatística, se preferir; note que tive o cuidado de manter o "quase", para explicitar que se trata de uma observação empírica, não uma regra absoluta.

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  5. E o Farmer, hein? E o José de Alencar? E a literatura? E todo o resto? ;-)

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