Driving Mr. Radford

Na verdade, quem conduziu o psicólogo, jornalista, investigador de monstros e fenômenos paranormais americano Benjamin Radford em sua breve passagem por São Paulo, inclusive indo buscá-lo no aeroporto,  foi Kentaro Mori, o incansável editor do Ceticismo Aberto, mas como também tomei parte nas atividades de Radford pela capital paulista -- um almoço com jornalistas e blogueiros, seguido de um debate no auditório do jornal Folha de S. Paulo, tudo na última sexta-feira -- e vi que o título ainda não tinha sido usado, resolvi apropriar-me dele.

Imbuído de espírito turisto-etílico, eu havia sugerido que levássemos Radford para almoçar no Sujinho ou no Bar Brahma  (o Ponto Chic era uma terceira opção), mas imagino que considerações de caráter mais pragmático -- incluindo o fato de que não poderíamos passar a tarde inteira no restaurante jogando conversa fora e enxugando canecas de chope -- fizeram com que Mori e o editor de Ciência e Saúde da FSP, Reinaldo José Lopes, optassem por realizar a refeição no Wraps do Center 3, uma casa de sanduíches e pratos rápidos, estrategicamente próxima ao metrô.

O almoço, seguido de uma parada para o café na franquia Starbuck's do mesmo shopping, foi bem agradável, embora Reinaldo começasse a dar mostras de preocupação com o horário. Depois, via metrô e uma instrutiva caminhada (a passo acelerado) pelo centro paulistano, chegamos à Folha e ao debate.

Não vou tentar resumir tudo aqui mas, em linhas, gerais, Radford buscou estabelecer uma distinção entre o que eu chamaria de crença de caráter pessoal e crença de impacto público. Com base nessa distinção, ele tentou descartar a ideia de que existiria uma vinculação necessária entre ceticismo científico e ateísmo.

Nessa distinção, a questão da existência de Deus seria uma crença pessoal, de foro íntimo, sobre a qual não caberiam juízos externos ao da consciência da pessoa que a professa. Já crenças de impacto público, que invocam evidências disponíveis no mundo e afetam a vida e saúde das pessoas -- dizer que Deus existe porque Nossa Senhora apareceu flutuando numa nuvem, ou não vá ao médico, basta rezar, ou homeopatia funciona ou um vampiro mordeu meu cachorro -- são perfeitamente contestáveis, testáveis e, de fato, existe até mesmo um certo imperativo  moral para que as contestemos e desafiemos, exigindo provas satisfatórias de quem alega esse tipo de coisa.

Por conta disso, Radford buscou distanciar-se do ateísmo militante de Richard Dawkins ou PZ Myers, que seria, até certo ponto, contraproducente para a causa da disseminação do pensamento crítico e do ceticismo científico.

Embora a distinção entre crença pessoal e crença de impacto (esses termos são meus, e não faço ideia de se Radford concordaria com eles) seja intelectualmente -- digamos, platonicamente -- aceitável, tenho sérias dúvidas sobre se ela é aplicável fora do mundo das formas ideais e aqui, no mundo real. Ofereci duas provocações nesse sentido, uma no almoço, outra durante o debate. A primeira foi: tá, mas se você esvazia uma crença de todos os seus referentes no mundo material, se você a desconecta de toda e qualquer forma de teste, prova ou evidência, o que resta? O que sobra para acreditar, enfim?

A resposta que obtive foi um exemplo: o amor. Você acredita que uma pessoa o ama. Como você justifica essa crença? Porque a pessoa trata você bem? Mas todo mundo trata muita gente bem, e o motivo nem sempre é amor.

É um argumento interessante, mas depois me ocorreu que esse é um caso típico em que uma prova evidencial negativa é perfeitamente possível: se você acredita que é amado por uma pessoa, mas essa pessoa tenta lhe matar assim que você se distrai -- bem, ou sua crença é falsa ou você tem de redefinir amor de uma forma totalmente incompreensível para o restante da humanidade.

A conversa na mesa estava animada, no entanto, e não tive como saber qual resposta Radford daria a essa objeção à ideia de que é possível sustentar uma crença pessoal significativa sem, ao mesmo tempo, abrir caminho para algum tipo de desconfirmação evidencial.

Minha segunda tentativa de sondar a questão veio bem no fim do debate na Folha, quando perguntei a Radford se não se irritava com os religiosos que começavam oferecendo milagres -- empiricamente testáveis -- para justificar sua fé e que, quando viam o milagre desconstruído pela ciência, recuavam para a posição de que a fé era uma coisa de foro íntimo.

Ele disse que sim, que isso é meio irritante, mas fez duas ressalvas. A primeira foi a de que sua atividade de investigador cético diz respeito a alegações específicas -- esta estátua chorou sangue; aquela pessoa foi curada por um milagre -- e não a doutrinas, filosofias ou religiões in toto. A segunda foi a de que o processo também acaba sendo meio divertido, porque sempre gera novos supostos "fenômenos" para ele investigar.

Para mim ficou claro, no entanto, que ele considera a manobra intelectualmente desonesta. Cito de memória, mas Radford disse que, cedo ou tarde, os proponentes de milagres religiosos "se refugiam em milagres de 2.000 anos atrás, que não tenho como investigar".

Enfim, a questão de se existe a possibilidade concreta de haver uma crença íntima que não seja também uma crença de impacto, e suas consequências para o debate teísmo-ateísmo, ficou em aberto. E embora eu concorde com o princípio de que o que se deve investigar, sob a perspectiva cética, são alegações específicas de fenômenos, e não sistemas, a ideia de que a evidência acumulada no estudo de um sem-número de fenômenos não teria nada a dizer sobre a validade do sistema no qual eles se inserem me parece mais uma saída diplomática do que uma proposição intelectualmente respeitável.

Mas isso pode ser só o meu ateu ranheta interior falando. Foi muito bom passar a tarde de sexta-feira na companhia, não só de Benjamin Radford, mas também de amigos brasileiros muitos dos quais eu só conhecia por e-mail. Só espero que Ben possa voltar, algum dia, com mais tempo. Quem sabe aí rola uma tarde de seresta no Bar Brahma?

Comentários

  1. Orsi, para futura referência: NUNCA deixe o Reinaldo escolher o restaurante.
    Abraço, claudio angelo

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  2. Orsi,

    Costumo praticar o que chamo de "ceticismo de resultados", que é algo muito próximo ao que o Radford disse. Embora eu sempre me apresente como ateu nas discussões, eu não costumo contestar a fé das pessoas, apenas tento mostrar que os fenômenos ditos para-normais não podem ser simplesmente explicáveis como resultado do sobrenatural. Tem sempre uma explicação material e terrena.

    Acho que assim posso me colocar de forma menos agressiva e ter a possibilidade de provocar o espirito crítico do meu interlocutor sem que ele reaja negativamente de imediato.

    É tipo: "não contesto sua fé, mas não é demais achar que desceu ontem no seu quintal um ET enviado por Deus?".

    E se eu conseguir esvaziar a crença de alguém de todas as suas referências materiais e não sobrar nada para acreditar, então bingo! Passa a ser uma questão de tempo que meu interlocutor vire ateu, sem que eu tenha que brigar com ele ou esmurrá-lo até ele parar de acreditar.

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  3. Eu imagino que ele se referia a algo mais próximo do deísmo ou pandeísmo (ou que Dawkins chamou de religião einsteniana). Que no foro íntimo o sujeito pode ver a engrenagem do universo ou este mesmo - o todo - como sendo deus. Não um deus pessoal, interferente, interessado ou antropomórfico, apenas no campo filosófico/metafísico. Mas na verdade sequer creio que esse tipo de preocupação (ateísmo militante ou antiteísmo) seja tão relevante. Se o sujeito tem essa visão de deus, a tendência dele é se juntar a ateus e não a religiosos.

    Tomando emprestada a definição da ATEA para ateísmo, no qual até o agnóstico é ateu pela rejeição ao teísmo, então o deísta poderia ser considerado ateu. No sentido amplo, rejeita o teísmo, então ateu. No sentido estrito, deísta/agnóstico etc.

    Mas ainda dentro deste ponto de vista, uma coisa que percebo é que as vezes uma discussão é esvaziada pelo religioso quando ele chega às lacunas e apresenta isso como deus (falo lacuna mesmo, não algo que é perfeitamente explicável cientificamente). O ateu, obviamente, não terá reposta. Aí o religioso padrão (vamos assumir o cristão, já que é o caso brasileiro) assumirá ter vencido a discussão e sairá satisfeito com a fé ainda mais fortificada. É neste momento que o ateu, ainda que seja ateísta convicto (dentro da tabela de agnosticismo granular de Richard Dawkins, este considerando-se 6 ou 6,9), deve ser capaz de afastar ao menos o deus cristão da lacuna. Algo como "olha, sujeito, Pode até ser que exista algo em outro plano, superior, interior, filosoficamente, blablabla, mas com certeza, pelo que observamos, esse algo não é o deus cristão." Depois é só soltar uns exemplos bíblicos para corroborar e bingo; este cristão poderá refletir melhor a respeito das próprias crenças.

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