O voo do Dragão


O título desta postagem é idêntico, se não me engano, ao do filme em que Bruce Lee mói Chuck Norris de porrada no Coliseu de Roma, mas não é disso que vou tratar hoje, e sim do lançamento bem-sucedido da cápsula Dragon, a bordo de um foguete Falcon 9, ocorrido durante a madrugada. Se, nos próximos dias, a missão Dragon  se completar também com sucesso, estaremos assistindo a um feito histórico.

Caso a Dragon realmente chegue a se acoplar à Estação Espacial Internacional (ISS) no fim de semana, existirão cinco entidades, em todo o Universo, com a capacidade tecnológica necessária para a acessar o único posto orbital tripulado da Terra: os governos russo, americano e japonês, a União Europeia e uma empresa privada.

Tanto a Dragon quanto o foguete Falcon são produtos de uma companhia particular, a SpaceX, e o lançamento se encaixa na visão do presidente Barack Obama de "privatizar", ou "terceirizar", o acesso humano à órbita terrestre.

Embora a Dragon que entrou em órbita hoje esteja transportando  apenas carga, a cápsula pode -- em tese -- ser reconfigurada para levar astronautas. Efetivamente, a Dragon da SpaceX está posicionada para se tornar o sucessor oficial do ônibus espacial da Nasa.

Alguém poderia argumentar que o verdeiro momento histórico ocorrerá de fato quando, e se, virmos uma nave privada desembarcar gente na ISS, mas o voo desta terça-feira é um primeiro passo essencial nessa direção.

O eventual sucesso da Dragon e do Falcon 9 provavelmente vai estimular uma nova rodada de acalorados debates entre estatistas e privatistas -- neste caso, contrastando a eficiência da SpaceX com a morosidade paquidérmica da Nasa, cujo sistema equivalente (cápsula Órion e foguete Ares I) perdeu-se em meio a atrasos escandalosos e absurdos estouros de orçamento. Mas a história é um pouco mais complicada do que isso.

Primeiro, a arquitetura que a Nasa vinha preparando era muito mais complexa, já que envolvia ainda um foguete de grande capacidade de carga (o Ares V) e outros sistemas necessários para um retorno de astronautas à Lua. O mandado da SpaceX é muito mais simples: dar acesso à ISS, ao menor preço possível. Segundo, a Nasa, depois de ter recebido a missão de implementar o Programa Constellation -- do qual o sistema Órion-Ares fazia parte -- nunca teve o orçamento necessário para levá-lo adiante. Então, a comparação é meio injusta.

Se existe uma lição a tirar da comparação entre o público e o privado nessa história toda, é o velho adágio de que o "ótimo" é inimigo do "bom": assim como os ônibus espaciais -- que tinham de ser naves de carga, de tripulantes, funcionar como laboratórios orbitais e como oficinas mecânicas (para, por exemplo, realizar reparos no Hubble) -- o Constellation foi vítima do próprio gigantismo e da falta de vontade política.

A Dragon também, em tese, pode operar como nave de carga, laboratório e transporte de passageiros, mas não tudo ao mesmo tempo. Diferentes configurações servirão a diferentes propósitos, o que simplifica um bocado as coisas. O Constellation até que tentou uma abordagem semelhante, baseada em módulos intercambiáveis mas, amarrado ao lastro de ambições pouco realistas do restante do programa, não foi à frente.

Também é bom lembrar que a "privatização" do espaço não foi uma decisão ideológica do governo Obama, e sim uma imposição trazida pelos fatos: o plano de reestruturação dos voos espaciais tripulados elaborado pelo governo George W. Bush após o desastre da Columbia, em 2003, simplesmente não foi financiado como deveria. Quando Obama chegou, apenas as metas negativas -- aposentadoria dos ônibus espaciais,  desativação da ISS -- estavam em condições de ser implementadas. As positivas, incluindo o Programa Constellation e o retorno à Lua, encontravam-se em frangalhos.

Com o tsunami da crise econômica batendo de frente, minha impressão é a de que o presidente atual fez a única coisa que poderia ter feito, e que incluiu a renovação do compromisso com a Estação Espacial, que pelo plano original seria abandonada para queimar na atmosfera em 2015, mas que agora voará até 2020.

Também há a esperança de que o clima de competição capitalista engendrado pela tal "privatização" (a SpaceX não tem nenhum tipo de monopólio na área: outras empresas podem tentar criar cápsulas e foguetes compatíveis com a ISS, testá-los e tentar vender seus serviços) de algum modo estimule a economia, a criatividade e a inovação tecnológica. A ver veremos.

Se a Dragon for bem-sucedida em sua missão atual e o pessoal da Planetary Resources realmente conseguir botar um de seus telescópios espaciais em órbita nos próximos anos, a segunda metade desta década poderá assistir a uma espécie de renascença espacial, agora pelas mãos de empresas criadas por gente que era criança, ou talvez ainda nem tivesse nascido, quando Neil Armstrong pisou na Lua.

Mas tudo depende, claro, do que a Dragon vai fazer no restante da semana. A decisão sobre se a nave tem condições de tentar ligar-se à ISS deve ser tomada no quarto dia da missão, o que seria neste sábado. A nós, aqui embaixo, o que resta é esperar.

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