Julgando revelações, ao estilo do Vaticano


Revelações e aparições místicas são filosoficamente interessantes porque levantam, pelo menos, duas questões espinhosas: a primeira é o abismo entre experiência e narrativa -- a pessoa que tem a revelação sente alguma coisa e depois descreve aquilo que sentiu como, digamos, "Deus falou comigo", mas fica em aberto a questão, o que é isso que se descreve como "Deus falando?" O que a pessoa realmente sentiu, afinal? Em poucas situações os limites da linguagem são tão claros (e tão frustrantes). Por exemplo, quando Paulo escreve, na Segunda Carta aos Coríntios, que foi "arrebatado ao paraíso, e lá ouviu palavras inefáveis", ele está descrevendo o quê, exatamente?

O vácuo entre fato e relato leva algumas pessoas a imaginar que toda experiência mística é essencialmente a mesma, e que apenas as descrições variam, por conta do contexto cultural do visionário. Esse essencialismo tem defensores tanto entre os místicos (que encaram o suposto núcleo comum da experiência como uma manifestação da Verdade Única) quanto entre materialistas (que buscam um a causa neurológica comum subjacente). Mas a hipótese essencialista está longe de ser consensual, enfrentando desafios graves nos dois campos.

A segunda questão é a da veracidade ou, mais exatamente, da verificação. Creio que foi David Hume quem primeiro apontou o problema: se Deus fala com você, talvez você tenha bons motivos para acreditar, mas eu só tenho a sua palavra, e quem me garante que você não está louco, iludido ou mentindo?

Em seu clássico artigo de 1978, Language, Epistemology, and Mysticism, o filósofo Steven T. Katz afirma que "nenhuma proposição verídica pode ser gerada com base em experiência mística" e que "parece certo que a experiência mística não é, e não pode ser, base lógica para qualquer afirmação definitiva sobre a natureza ou verdade de qualquer posição, religiosa ou filosófica".

Curiosamente, foi também na década de 70 -- quatro anos antes da publicação de Katz -- que a Congregação para a Doutrina da Fé (a versão "tucanada" da Inquisição) estabeleceu os critérios de avaliação da Igreja Católica para fenômenos como aparições e revelações religiosas. Embora tenha circulado amplamente desde então (alguns de seus pontos são mencionados no meu Livro dos Milagres), o documento só foi publicado "oficialmente" em tempos recentes, no site da Congregação.

Com sua estrutura hierarquizada, a Igreja Católica vive uma tensão constante entre a necessidade de preservar sua estrutura de poder e sua pureza doutrinária, de um lado, e o fervor individual e a religiosidade popular, do outro. Fervor e movimentos populares são necessários para manter viva a fé e garantir a sobrevivência da organização nas próximas gerações, mas também são uma ameaça, já que podem, eventualmente, solapar o status-quo (Jesus, afinal, pode ter sido apenas um judeu especialmente fervoroso, e veja o que o judaísmo "ganhou" com isso).

Então, é preciso abrir espaço para místicos e visionários, se não por qualquer outro motivo, porque ajudam a atrair multidões e encher os cofres. Mas é preciso, também, que o espaço dado a eles tenha limites estritos e seja, sempre, muito bem patrulhado. Como fazer isso?

Embora o primeiro critério oferecido pelo documento da Congregação, "certeza moral, ou ao menos uma grande probabilidade do fato, adquirida por meio de séria investigação", pareça sólido, ele é, na verdade perfunctório -- primeiro, porque não há nenhuma elaboração metodológica a respeito do que consiste uma "séria investigação"; segundo, por conta do que vem em seguida, como a exigência de "doutrina teológica e espiritual verdadeira, livre de erro", e dos "critérios negativos" (isto é, indicadores de falsidade) apresentados, com destaque para: "Erros doutrinais atribuídos ao próprio Deus, à Abençoada Virgem Maria, ou a algum santo em suas manifestações".

Agora, paremos um pouco para pensar nisso. Digamos que um dia Deus apareça para o papa e lhe diga que, poxa, na verdade não há nada de errado em uma mulher consagrar a hóstia -- que mulheres podem muito bem ser padres (madres?) e rezar missas. O papa terá de concluir que Aquele Cara Barbudo de Camisola falando com ele não é Deus, porque, veja só, a afirmação contraria a doutrina. Pelo critério, se houver algo errado na doutrina católica, nem que seja um detalhezinho besta qualquer, não vai adiantar nada Deus, Maria e os santos todos aparecerem juntos para avisar.

O documento da Congregação também diz que, no longo prazo, é preciso prestar atenção "na fecundidade do fruto espiritual gerado pela nova devoção, a fim de expressar um julgamento sobre sua autenticidade e caráter sobrenatural". Elaborando sobre o tal fruto espiritual, o texto menciona "oração, conversão, testemunho".

Então, resumindo: para a hierarquia católica, uma experiência mística é real se, e somente se, ela (a) repetir o que a Igreja já vinha dizendo e (b) der bons "frutos", isto é, levar as pessoas fazer o que a Igreja já queria que elas fizessem. O que, fundamentalmente, esvazia a revelação de qualquer potencial transformador, e me parece uma forma extremamente cínica e manipulatória de exploração da credulidade popular para ganho próprio. Mas isso deve ser só porque estou olhando de fora.

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