A ciência do suborno

Na pré-história de minha carreira jornalística, certa vez atendi a uma denúncia anônima: alguém ligara ao jornal à noite dizendo que, naquele instante, uma secretaria inteira da prefeitura -- acho que a de Finanças -- estava jantando de graça num restaurante chique, por conta de uma empreiteira.

Bandeei-me, acompanhado de uma fotógrafa, lá para o restaurante e, de fato, encontrei não só o secretário, como boa parte do segundo escalão comendo, felizes, junto a representantes da empresa.

Com a ousadia da juventude, perguntei ao secretário, um notório casca-grossa da política interiorana, se ele achava conveniente aquela situação. Ele me deu uma resposta surpreendentemente educada: "Isto aqui é pouca coisa. Não paga nenhum tipo de corrupção". Inexperiente, perdi a oportunidade de perguntar qual era, então, a tabela oficial.

O gerente do restaurante depois ligou para o dono do jornal pra reclamar da minha "impertinência", mas ninguém nunca me repreendeu formalmente.

De qualqur forma, a resposta do secretário ficou comigo todos esses anos. Certo, nenhum funcionário público vai pôr a carreira em risco por conta de uns R$ 200 em filé malpassado e vinho chileno, mas e quanto ao efeito indireto do jantar? Ele talvez não comprasse corrupção, mas muito provavelmente comprava boa-vontade -- o que pode ser até mais importante, dado caráter personalista e patrimonialista do Estado brasileiro.

Agora, um estudo, publicado na PNAS, me ajuda a pôr a coisa toda em perspectiva. O protocolo é meio convoluto, mas creio que dá para resumir assim:

1. Cientistas encomendaram a estudantes de uma escola de Belas Artes uma série de obras originais;

2. Cientistas reuniram dois grupos, um de críticos de arte e um de leigos, para avaliar as obras;

3. Os dois grupos foram informados de que a corporação "X" estava pagando US$ 300 a cada um deles, avaliadores;

4. Algumas obras de arte foram apresentadas ao lado do logo da corporação "X", enquanto que outras, ao lado do logo de uma outra corporação não relacionada, "Y".

Resultado: os leigos consideraram, consistentemente, as obras apresentadas ao lado do logo "X" como melhores do que as obras ao lado do logo "Y". Já os críticos profissionais não mostraram nenhum viés -- isso é, seus julgamentos não tiveream nenhuma correlação significante com os logos.

A conclusão dos pesquisadores é de que os especialistas, de alguma forma, foram capazes de neutralizar a "boa-vontade" inconsciente gerada pelo logo do suposto patrocinador do estudo, enquanto que os leigos não souberam fazer isso.

Usando ressonância magnética funcional, os cientistas viram que a área do cérebro ligada ao controle das emoções, o córtex dorsolatral pré-frontal, estava mais ativo nos especialistas, e aparentemente foi capaz de neutralizar o efeito do dinheiro no centro formador de preferências, o córtex ventromedial pré-frontal.

Isso indica que "comprar", por vias indiretas, a boa-vontade de um especialista a ponto de afetar seu julgamento em sua área de expertise pode ser especialmente difícil. Melhor, portanto, deixar a sutileza de lado -- e levar todo mundo para jantar.

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