Falácias jurídicas e probabilidade condicional

Dizem que O.J. Simpson tinha um advogado tão bom que conseguiu usar o fato de que o ator e ex-jogador de futebol espancava a mulher para convencer o júri de que era improvável que ele a tivesse matado.

Como? Bem, o defensor citou uma estatística dizendo que, dos maridos que espancam as esposas, apenas 1 em 1.000 se tornam assassinos. Logo, a chance de seu cliente ser culpado era de 0,1%!

Em outro ponto do julgamento, a defesa atacou a evidência do exame de sangue que ligava Simpson à cena do crime, dizendo que seria possível "encher um estádio" com pessoas que também dessem positivo no mesmo teste.

Ambos os argumentos são exemplos da chamada "falácia do advogado de defesa" ou "falácia do promotor" (dependendo do lado do argumento a que serve), e que basicamente representa o truque de expor estatísticas e probabilidades sem oferecer o contexto necessário para sua interpretação.

 Essa descontextualização costuma acontecer quando se confundem probabilidades condicionais, invertendo-as ou tratando-as como se fossem incondicionais.

Probabilidade condicional é a probabilidade de acontecer X, dado que aconteceu Y. Por exemplo, a chance de Beto e Alice estarem morando juntos, dado que são casados, parece bem alta. Mas qual a probabilidade de Beto e Alice serem casados, dado que moram juntos? Eles podem simplesmente estar dividindo o aluguel, ou serem irmãos, ou estarem "namoridos".

Assim, a probabilidade de X, dado Y -- na notação oficial, p(X|Y) -- pode ser bem diferente da probabilidade de Y, dado X, ou p(Y|X).

No caso O.J., os jurados foram expostos à chance de o marido vir a matar a mulher, sendo que ele a espanca (1 em 1.000, de qualquer forma muito mais alta que o risco de uma mulher ser morta por um marido que não a espanca, ou por um estranho qualquer na rua), quando o dado relevante, diante do fato consumado -- a esposa já tinha sido assassinada! --, era qual a chance de a mulher ter sido morta pelo marido, dado que ele a espancava.

No exame de sangue, o argumento do "estádio cheio" ignora o fato de que o suspeito, no caso, não era uma pessoa qualquer, escolhida ao acaso na rua, mas alguém contra quem já pesavam diversas outras evidências de autoria do homicídio.

Mesmo supondo que, na população da cidade onde o crime foi cometido, 10.000 pessoas tivessem o mesmo tipo de característica detectada pelo exame, quantas das outras 9.999 tinham motivo, oportunidade e meios para cometê-lo? E contra quantas delas pesavam evidências complementares tão fortes quanto as que existiam contra O.J.? Esse contexto foi omitido pelo advogado.

No lado da promotoria, o caso mais conhecido de erro de probabilidades é o de Sally Clark (que ilustra esta postagem, aliás). A britânica perdeu dois filhos -- ambos bebês recém-nascidos, nas primeiras semanas de vida -- num intervalo de poucos anos. Ela foi condenada por duplo homicídio, com base no argumento de que a probabilidade de haver duas vítimas consecutivas de Síndrome da Morte Súbita Infantil numa mesma família era baixa demais.

A própria Royal Statistical Society manifestou-se contra o veredicto. Antes de condenar Sally, não bastava estabelecer que a probabilidade de duas mortes acidentais consecutivas era extremamente baixa;  ainda deveria ter sido demonstrado que a probabilidade de duplo homicídio seria maior. O que não era o caso: um matemático chegou a calcular que a chance de uma mãe matar deliberadamente dois bebês recém-nascidos era várias vezes menor que a de dois acidentes.



Comentários

  1. Como eu canso de dizer. Estatística é arte de torturar os números até que eles digam o que você quer ouvir (infelizmente não lembro o autor original da frase, que não é minha).

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  2. Estatistica é como biquine, mostra tudo menos o essencial. Roberto Campos

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  3. A ignorância das pessoas que não estudam estatística é que faz com que dados estatísticos sejam manipulados, como já disse meu professor, o cérebro humano não está habituado a lidar com o acaso. No caso do julgamento, se a promotoria, por exemplo, tivesse estudado estatística teria questionado as provas da defesa no mesmo momento. Por isso eu acho que deveria ser obrigatório o ensino de estatística para os alunos de Direito.

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